Sentindo-me acabrunhada antes de
dormir, resolvi tomar um copo de leite. Ao pegar a caixa e despejar o conteúdo,
indelicadamente derramei o precioso líquido. Após limpar a bagunça, sentei-me na
cadeira próxima a mesa, disposta a sorver o restante que permanecera no recipiente.
De súbito, veio em minha mente à comparação das passagens de minha existência com
o conteúdo esparramado. Divaguei, assim são os sonhos, após espalhados, são
perdidos, quer tenham sido realizados ou não. E o suave líquido após absorvido, apesar de
alimentar graças a sua riqueza em proteínas, lactose, vitaminas e sais
minerais, sofre posteriormente um processo de fusão natural misturando-se à
massa corpórea e a corrente sanguínea, expelindo os excessos, cumprindo assim a
sua função natural. Porém, quando entornado, perde-se na matéria, sem cumprir o
seu papel vital. Na vida ocorre ação
semelhante: os projetos realizados são incorporados ao consciente e os
fracassos são meras energias perdidas, que se foram sem condições de resgate.
Infelizmente não é possível juntar e aproveitar o que verteu. É irônico
constatar como pensamento e matéria tem uma mesma sinergia, uma finalidade similar.
No cotidiano o que deixamos passar ou o que perdemos se dissipa no tempo e no
espaço, procedimento que também ocorre com as coisas, os elementos que nos
servem. O que é desperdiçado seja em devaneios ou em elementos sólidos ou
líquidos não pode ser recuperado. Simplesmente se vai. E tudo passa... Com a estação, lá se vão os eventos irrealizáveis,
os derramamentos desastrosos, deixando porcarias para limpar, frustrações para
sanar. Estranho pensar o quanto os movimentos externos refletem na mente
interior. O leite verteu, escorregou, foi sorvido pelo pano que o enxugou. Os
planos, as aspirações por mim não concretizadas foram sugadas pelo
inconsciente, delas restando apenas lembranças, que como o líquido espargido
são passíveis de apresentar classificações sadias, azedas, aguadas, fortes,
dependendo da forma como foram armazenadas.
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