sexta-feira, 13 de junho de 2014

O Menino Triste


  
Dona Catarina era uma vovó daquele tipo bondoso, aspecto delicado, olhos azuis claros, cabelos totalmente brancos, que por serem longos, ficavam presos num coque. Morava numa casinha, situada em um belo sítio, rodeada de árvores frutíferas e jardins, além das plantações de hortaliças, cuidadas pelos trabalhadores contratados, cujas famílias residiam em habitações próximas.  Ali os animais bem tratados, eram compostos por: vacas leiteiras esbaldando-se nos pastos, cavalos passeando pelos campos delineados, galinhas cacarejando nos seus terreiros, cães correndo soltos. A rotina transcorria ordenada, até que a tranquilidade foi quebrada com a tristeza pela morte, em acidente automobilístico, de seu único filho, que perecera juntamente com a esposa.
Sobrevivera um neto, um garoto de oito anos chamado José Luiz, cujo apelido era Zézico. O menino ficara prostrado com a perda dos pais e a mudança repentina, saindo da grande cidade, indo residir no campo junto da avó, a parente que lhe restara. Zézico passava a maior parte do tempo no quarto, jogado sobre a cama, alimentando-se muito pouco. Até o médico fora chamado, mas nenhuma doença grave foi constatada. O problema era a tristeza, a dor da alma.
Numa tarde, a gentil velhinha entristecida, deitou-se na sua rede favorita, preocupada em encontrar alternativas para ajudar o netinho.
Adormeceu e sonhou que ela era um anjo, e como tal, teria poderes de criar um ser especial, um super-herói capaz de comunicar-se com a criança que se mantinha isolada, calada, refugiada num mundo interno de dor e saudade.
Sentindo-se leve, na roupagem e com as asas do anjo em que se transformara, ela foi voando até o quarto onde o pequeno jazia prostrado, numa agonia e silêncio profundo, que nem a medicação conseguira melhorar. Do alto das paredes, ela observou o menino que permanecia com os olhos abertos, porém, imóvel. Então, usando seus poderes mentais manifestados em sua forma angelical, a vovó Catarina, entrou na mente do netinho, lendo seus pensamentos aflitivos:
– Ah! Como estou infeliz, lamentava-se ele. - Não tenho mais família; os pais que eu amava se foram; mudei de residência, de cidade, perdi também os amigos, nada restou. Eu não mais tenho razões para viver. Quero só ficar aqui, quieto sobre a cama, esperando morrer e assim, poder reencontrar aqueles a quem tanto amo e perdi.
A avó, personificada num anjo invisível ao ser humano, acariciou ternamente a face do garoto, que sentiu apenas um leve arrepio, como se fosse à carícia da mão abençoada de sua mãe. Quebrou o mutismo e murmurou:
– Mamãe, é você? Você veio me buscar?
E sentindo um toque conhecido nas mãos, indagou:
– Papai, você também está aqui? Você e a mamãe vieram me buscar para voltarmos a ser uma família?
Como por milagre e inspiradas por uma criatura superior, o pequeno José Luiz, ouviu mentalmente as vozes de seus pais explicando:
– Amado filho, nós estamos aqui para dizer-lhe que ainda não é a sua hora de partir. Você tem uma tarefa a realizar neste planeta. Porém, você nunca estará sozinho. Nós estaremos junto a você, cada vez que pensar em nós.  Estas foram as palavras afetuosas sussurradas por sua mãe.
Então, o pai, em tom enérgico, todavia amoroso, concluiu:
– Filho, levante e permita-se ver a beleza da natureza lá fora. Você tem a companhia da sua avó que não o deixará sozinho e ela representa um anjo bom, que zelará pela sua pessoa. Cada vez que ela o abraçar, sinta como se eu e sua mãe o estivéssemos fazendo. Ela nos representa neste mundo, portanto, não nos deixe apreensivos com seu comportamento recluso. Aceite o afeto que a vovó lhe oferece. Permita que ela o ame, e ame-a igualmente. Nós prometemos que providenciaremos um amigo para acompanhá-lo nas brincadeiras e nas caminhadas pelo sítio. Agora precisamos ir. Fique em paz e com saúde, amado filho.
Feito isto, o anjo que representara por momentos a figura dos pais falecidos do deprimido garoto, beijou-lhe a face, e retornou à rede, onde a atribulada vovó descansava. Ainda sob o efeito do sonho, dona Catarina, sentindo-se uma figura angelical, perguntou:
– O que devo fazer para trazer alegria ao meu neto? Gostaria de dar-lhe um presente, quiçá um amigo, um ser que constitua num estimulo para superar esta fase difícil.
E mantendo a personificação de anjo, ela voou por entre a propriedade à procura de um ser especial. Como se fosse guiada, ela pousou o olhar sobre um filhote Cocker Spaniel Inglês, um tipo de cão de pequeno porte, capaz de mover-se com desembaraço por terrenos e com excelente olfato. O animalzinho deveria ter cerca de seis meses de idade, mas já corria solto pela vegetação, deixando suas marcas.
Aproximou-se delicadamente e como anjo oculto inquiriu:
– Cãozinho, você quer me auxiliar a cuidar de um garotinho que está sozinho e melancólico?
Entendendo a mensagem do ser especial que tocava em seu pelo, o cãozinho, animado abanou o rabinho, articulando:
–Sim, eu aceito a tarefa. Serei seu colaborador e o guia companheiro da criança que você que ajudar.
– Ótimo, então eu o declaro um cão Super-Herói. A partir de agora você irá se comunicar com o menino Zézico, e ficará sob sua responsabilidade alegrá-lo.
O cachorrinho saltitou alegremente, em agradecimento a honraria que lhe fora concedida.
– E onde eu encontro este garoto? Soçobrou ele.
– Venha comigo que irei lhe mostrar onde ele está.
E unidos voaram até o quarto onde o soturno menino repousava.
Enquanto isso, Dona Catarina, ainda adormecida, sentiu uma brisa suave sob seu corpo, um farfalhar como se uma energia desprendia de sua mente, e foi aos poucos acordando.
– Eu sonhei que era um anjo? Interrogou-se, respondendo ao mesmo tempo.
– E como anjo eu pude ajudar o Zézico. Oh! Como seria bom se isto fosse real.
Divagando, ela expressou:
– E na forma angelical eu até providenciei um cãozinho para ser amigo do meu querido netinho. Que maravilha!
A velha senhora levantou-se vagarosamente, espreguiçando-se. Adentrou a casa, dirigindo-se até os aposentos da criança. Estranhou que a porta estava aberta, e ainda mais por ouvir a voz do garoto, que insistia em permanecer mudo há tanto tempo. Maravilhou-se com o quadro delineado sob seu olhar.
Zézico sentado no chão, tendo em seu colo um filhote de cachorro da raça Cocker. O menino indagava em voz sonora:
–Você quer ser meu amigo? Se quiser, abane essas orelhas grandes que entenderei como um sim.
Espantada, a avó percebeu um gesto no cão, assentindo com o corpo, numa resposta positiva.
O neto sorriu ante o gesto afirmativo do animal, e complementou:
– Então, dê-me sua pata, e a partir de agora selamos a nossa amizade. Diga-me, você tem um nome?
O cãozinho levantou a uma das patas e olhou para a criança, ao que ela anuiu:
– Isto é um sinal; somos companheiros a partir de agora. Acho que você ainda não tem nome.  Bem, penso em chamá-lo de Rob, isto é um diminutivo para Roberto, que era o nome do meu pai. Você gosta deste nome?
Ante o latido do cachorrinho, o garoto sorriu, pronunciando:
– Muito prazer amigo Rob. Eu sou Zézico. Preciso arrumar um espaço para você dormir em meu quarto, já que me fará companhia.
E puxando um tapete felpudo que havia próximo ao leito, ele proferiu:
–É aqui que você irá dormir!
Somente então, Zézico percebeu a presença da avó na soleira da porta. E quebrando um longo período de mutismo e padecimento, a criança comunicou-se com a avozinha:
– Olhe vovó, que cãozinho lindo, e é um Cocker Spaniel Inglês. O papai sempre me contava que tivera um quando era criança. Agora eu também tenho igual, e foi ele quem me encontrou. Veio sozinho até o meu quarto, acordando-me com seus latidos. Como ele é esperto!
A velha senhora emocionou-se, lembrando-se do sonho. O anjo da guarda realmente incorporara em seu ser, e ele trouxera do canil o pequeno animal até o neto, ou será que fora ela, a avó em pessoa quem buscara o Cocker?
Não tinha lembrança de tê-lo feito, portanto, a vinda do cãozinho até o Zézico fora realmente uma obra do ser angelical, que em sua passagem também atribuiu ao pequeno animal os poderes de um Super-Herói, capaz de criar um elo de comunicação, iniciando a superação da tristeza e o redespertar da energia da vida no órfão. O Rob era o Super-herói extraordinário que acordara o neto para a continuidade da existência, possibilitando aceitar as adversidades e lutar enfrentando a tragédia que ocorrera.
Ouviu a voz do neto, desta vez mais segura, a indagar-lhe.
– Vovó, eu posso levar o Rob passear lá fora? Quero ensinar-lhe a correr atrás das borboletas.
–Claro querido, vá. Está uma linda tarde. Aproveite a pujança e o benefício da luz solar. O Rob irá adorar correr por ai, isto faz parte de sua natureza. Creio que vocês farão uma bela dupla!
Ante a saída intempestiva do garoto acompanhado pelo cachorrinho, dona Catarina ergueu as mãos para o céu, dizendo:

– Obrigada meu anjo da guarda pela ajuda e por ter designado um amigo super-herói como o cãozinho Rob para acompanhar e alegrar o Zézico. Agora eu sei que ele está pronto para recomeçar.










Leite da alma


Sentindo-me acabrunhada antes de dormir, resolvi tomar um copo de leite. Ao pegar a caixa e despejar o conteúdo, indelicadamente derramei o precioso líquido. Após limpar a bagunça, sentei-me na cadeira próxima a mesa, disposta a sorver o restante que permanecera no recipiente. De súbito, veio em minha mente à comparação das passagens de minha existência com o conteúdo esparramado. Divaguei, assim são os sonhos, após espalhados, são perdidos, quer tenham sido realizados ou não. E o  suave líquido após absorvido, apesar de alimentar graças a sua riqueza em proteínas, lactose, vitaminas e sais minerais, sofre posteriormente um processo de fusão natural misturando-se à massa corpórea e a corrente sanguínea, expelindo os excessos, cumprindo assim a sua função natural. Porém, quando entornado, perde-se na matéria, sem cumprir o seu papel vital.  Na vida ocorre ação semelhante: os projetos realizados são incorporados ao consciente e os fracassos são meras energias perdidas, que se foram sem condições de resgate. Infelizmente não é possível juntar e aproveitar o que verteu. É irônico constatar como pensamento e matéria tem uma mesma sinergia, uma finalidade similar. No cotidiano o que deixamos passar ou o que perdemos se dissipa no tempo e no espaço, procedimento que também ocorre com as coisas, os elementos que nos servem. O que é desperdiçado seja em devaneios ou em elementos sólidos ou líquidos não pode ser recuperado. Simplesmente se vai. E tudo passa...  Com a estação, lá se vão os eventos irrealizáveis, os derramamentos desastrosos, deixando porcarias para limpar, frustrações para sanar. Estranho pensar o quanto os movimentos externos refletem na mente interior. O leite verteu, escorregou, foi sorvido pelo pano que o enxugou. Os planos, as aspirações por mim não concretizadas foram sugadas pelo inconsciente, delas restando apenas lembranças, que como o líquido espargido são passíveis de apresentar classificações sadias, azedas, aguadas, fortes, dependendo da forma como foram armazenadas.

Imagens Freepik
Voltando ao mundo real, despejei num copo o que sobrara do leite, com o intuito de bebê-lo, ciente que dali retiraria o alimento necessário para aquele momento. Ao desempenhar esta ação, senti um sopro de ânimo, um alento vindo de minha alma, como a dizer-me: aproveite o tempo que resta nesta encarnação, nutra novos sonhos, e sorva-os, transformando-os em benéfica realidade, nutrindo o espírito, da mesma forma como o pouco leite que ainda restou irá fortificar e acalmar-lhe o corpo físico. Oh! Bendito e milagroso sustento.